- Dora Ghelman
O Vestido

Eu precisava comprar um vestido para usar em um casamento no qual seria madrinha.
Eu estava extremamente preocupada com qual vestido eu iria usar. Primeiro evento pós-pandemia. Primeira vez que iria encontrar com a grande maioria dos convidados. Não a primeira. Mas a primeira vez depois de dois anos.
Dois anos de pandemia.
Ou seja, eu estava gorda, pálida, bastante flácida e com muitas espinhas.
E com uma certa fobia social.
E, por ser madrinha, estaria em uma posição de maior destaque.
E meus pais estavam fazendo pressão para eu arranjar namorado.
Já que a minha irmã tinha acabado de se arranjar com o menino do trabalho.
Só tinha sobrado eu.
Coitada de mim.
Enfim… Receita perfeita para dar tudo errado.
Fui numa loja que já conhecia, para ser mais certeira, já que faltavam apenas duas semanas para o casamento e não teria muito tempo para procurar vestidos por aí.
Chegando lá, peguei três para experimentar. Os três ficaram grandes. Fiquei muito feliz. Há muito tempo não experimentava uma roupa que ficava grande.
A vendedora, uma mulher extremamente sorridente e com uma quantidade exorbitante de dentes, me disse que elas faziam dessa forma para caber em mais mulheres.
Achei ótimo. Hoje em dia é tão raro achar uma loja inclusiva. Quando ela me disse isso fiquei feliz e satisfeita.
Gostei de um dos vestidos, mas precisaria fazer alguns grandes ajustes. Tirar o bojo, apertar o tecido que sobraria no peito quando tirasse, apertar a cintura, mudar a amarração de cruzada para amarração reta, fazer bainha. Eram muitos ajustes para pouco tempo hábil.
Perguntei mais de uma vez se esses ajustes poderiam ser feitos, e se poderiam ser feitos a tempo. Todas as vezes, a vendedora, extremamente sorridente e com uma expressão bastante desconfortante, me jurou de pés juntos que sim. Inclusive me indicou a costureira que costumava fazer os ajustes para a loja, que ela já estava acostumada.
Teceu um milhão de elogios para a costureira, disse que era a mãe de uma das vendedoras, que eu não iria me arrepender. Me garantiu que daria tudo certo.
Confiei.
Paguei o vestido, peguei o telefone da costureira e saí.
Marquei para o dia seguinte a ida ao ateliê.
Chegando lá, fui atendida por uma senhora bastante simpática. Pediu desculpas pela falta de provador, disse que eu teria que tirar a roupa e colocar o vestido ali mesmo. Mas disse para eu ficar tranquila pois só havia mulheres ali e o que elas mais viam na vida eram peitos. Me senti levemente rebaixada. Poxa, meus peitos eram tão inferiores assim, que não mereciam uma atenção especial? Ninguém olharia para eles? Elas não se importavam? Mas relevei, coloquei o vestido e comecei a dizer todos os ajustes que precisavam ser feitos.
Prontamente a costureira disse que seria impossível.
“Ué, como impossível? A vendedora da loja me disse que você faria.”, disse.
Ela respondeu que não mexia com bordado – que tinha na cintura do meu vestido e que precisaria apertar – e que não havia tempo para cortar o tecido que sobraria depois da retirada do bojo.
Comecei a ficar nervosa.
Como me vendem um vestido me garantindo um ajuste que não poderia ser feito?
O casamento era em duas semanas. Eu já havia comprado o vestido. O que eu faria?
Eu tinha me visualizado naquele vestido. Eu ficaria segura nele. Me sentiria bonita o suficiente e isso me ajudaria com todas as minhas outras questões. O vestido era tudo. Tudo. Eu precisava daquele vestido pronto para usar no casamento.
A costureira começou a se justificar, dizendo que não mexia com bordado pois demandava muito tempo e responsabilidade e não queria se comprometer.
Eu entendi, ela tem o direito de não querer mexer em determinados vestidos.
Mas então eu não deveria ter comprado esse vestido.
A vendedora não poderia ter me jurado de pés juntos que os ajustes poderiam ser feitos.
A costureira, vendo o meu desespero, disse que tentaria apertar o vestido da melhor maneira que pudesse sem precisar mexer no bordado, nem cortar o tecido do bojo. E pediu para que eu voltasse na semana seguinte – a semana do casamento – para que eu experimentasse.
Ok, aceitei.
Não tinha alternativa.
Eu precisava do vestido.
E ela tentaria me ajudar.
Fomos marcar a bainha então. Ou eu achei que iríamos.
Simplesmente a costureira pegou uma tesoura, sentou-se no chão e começou a cortar o meu vestido sem medir, nem conferir se estava reto, nada.
Cortou. Ali. Na marra. Não tinha mais volta.
O vestido que eu havia comprado, gastado uma grana, que não poderia ser ajeitado da forma que eu gostaria, estava sendo mutilado na minha frente.
Pedi para ela parar no susto.
“Você está cortando o meu vestido? Não precisa medir para ver se a bainha vai ficar reta?”, perguntei.
“Não, não. Esse tecido se corta assim mesmo”, ela respondeu.
Olha, não que eu seja expert em vestidos. Mas nunca, na minha vida, eu havia visto uma coisa dessas.
Tentei disfarçar as lágrimas que caíam descontroladamente dos meus olhos e pousavam na máscara que por sorte cobria grande parte do meu rosto.
Enquanto ela cortava a bainha do meu vestido todo, sem dó nem piedade, contava que iria abrir mais um ateliê na zona sul. Estava recebendo muitas clientes na Barra, os negócios estavam bombando. Fazia sentido então expandir.
Eu só conseguia pensar na barra mutilada do meu vestido. As lágrimas fazendo poça na máscara.
Eu não falava nada, porque se abrisse minha boca a única coisa que sairia seriam gritos. Gritos de desespero.
Saí de lá com a promessa de que ela tentaria fazer o melhor que conseguisse para fazer os ajustes que eu pedi.
Mas eu estava borbulhando por dentro.
Pedi desculpas pelo meu comportamento. Não que eu devesse ter pedido, eu não fui grosseira em nenhum momento.
Mas meu “modo default” funciona automaticamente na culpa. Eu sou uma pessoa que se culpa.
Me foi prometido um serviço na loja, que não foi entregue no ateliê. Eu estava frustrada. E expliquei isso para a costureira.
Ela entendeu.
E a culpa não era minha.
Assim que botei os pés na rua, desabei no choro.
Sabe aquelas cenas de novela e filme em que a mocinha sai chorando descontroladamente pelas ruas da cidade sem saber o que fazer? Onde se escorar? Essa era eu. Na vida real. Chorando. No meio da rua.
De soluçar.
Sentei na sarjeta e lá fiquei.
Liguei para a minha mãe e compartilhei toda a minha indignação.
No início tentei controlar o volume da minha voz. Mas conforme a história se desdobrava, a voz ia subindo de volume.
Ela escutou tudo com a maior calma do mundo e concordou com tudo o que eu disse.
Quem não concordaria?
Depois de ter colocado tudo para fora, aos prantos, largada no meio-fio, minha mãe me responde a frase mais simples e cheia de camadas que alguém poderia ter me respondido: “ainda bem que era só um vestido, né?”.
Aquilo me quebrou.
Que ousadia de resposta era essa?
Que diabo?
Que audácia!
Fiquei puta da vida e desliguei o telefone.
“Só um vestido”. Aquilo ficou ecoando em mim.
Como assim “só um vestido”?
Eu tinha gastado uma grana, o casamento estava logo ali. Me foi prometido um ajuste que não tinha garantia de sucesso. O que eu iria fazer?
Respirei fundo e resolvi que não iria me estressar antecipadamente. Decidi esperar para ver o resultado dos ajustes.
Voltei ao ateliê na semana seguinte.
E o meu maior medo se tornou realidade: ficou horrível.
A costureira conseguiu deixar o vestido completamente torto, um peito para um lado e outro para o outro, as alças em alturas diferentes, o bojo completamente caído, e a cintura ainda larga.
Não vou nem entrar no mérito da bainha.
Me desesperei. E agora? O casamento era naquela semana. Aquele vestido estava inutilizável.
Fiquei sem jeito de dizer que o vestido estava completamente cagado. Mas disse, com a maior calma e educação que consegui extrair de dentro de mim naquele momento, que iria levar o vestido comigo pois não daria para refazer os ajustes a tempo de usá-lo no casamento. As costureiras entenderam.
Mas né, quem não entenderia? Meus peitos estavam completamente expostos por conta da costura malfeita da retirada dos bojos. A não ser que eu quisesse ir vestida como vim ao mundo, era impossível ir com aquele vestido no casamento. Claramente.
Agradeci e saí de lá com ele embaixo do braço.
Mas dessa vez eu não chorei – muito. Lembrei da frase que a minha mãe havia dito e que na hora me soou como um ultraje: “ainda bem que é só um vestido”.
E cara… realmente. É só um vestido. Ainda bem. Poderia ser pior, né?
Entrei no carro e fiz uma pausa dramática enquanto me olhava pelo espelho retrovisor.
“Parabéns, você conseguiu não chorar desesperadamente no meio da rua como na semana passada. Você é uma guerreira. Você é forte. Você é especial”, disse para mim mesma.
Fiquei um tempo pensando sobre a frase da minha mãe e cheguei a algumas conclusões.
Infelizmente esse ajuste não saiu do jeito que eu esperava. Às vezes – muitas vezes – essas coisas acontecem mesmo. E a vida tem que seguir, certo?
Ok, me desesperei.
Ok, paguei o maior mico no meio da rua.
Possivelmente viralizei no YouTube como a doida chorando descontroladamente deitada na calçada.
Mas tudo bem.
Era só um vestido.
Eu iria comprar um novo para usar no casamento que teria no sábado – um que não precisasse de ajustes. Eu iria me sentir segura da mesma forma.
Eu causaria uma boa impressão. Eu não precisava daquele vestido. Eu precisava de um símbolo de confiança. De um objeto que fizesse eu me sentir bonita, segura e feliz comigo mesma.
Eu não precisava do vestido para isso. Iria encontrar essa confiança em mim mesma – e em umas boas doses de tequila.
Usaria o novo vestido e desfilaria essa minha bunda flácida e rosto espinhento na frente de todo mundo.
E levaria esse vestido todo cagado para uma costureira de confiança para fazer os ajustes direito, e principalmente: COM CALMA.
Eu teria outras oportunidades para usá-lo ao longo do ano. Afinal, seria madrinha de outras duas amigas ainda esse ano (socorro!).
Uma vez minha psicóloga me disse que coisas pequenas acontecem no nosso dia a dia para nos lembrarem das pequenas coisas que precisamos trabalhar em nós mesmas, e nos lembrarem do que, de fato, é importante.
Eu acho que o vestido não era importante. Mas toda essa história do vestido serviu para me lembrar do que importa.
Imprevistos acontecem.
Não podemos querer controlar tudo. É impossível. Não dá. É enlouquecedor.
Não podemos chorar pelo leite derramado.
Ou podemos, né? Chorar, no caso.
Faz parte.
E não precisamos fazer uma cena de desespero no meio da rua por conta.
Ou podemos também.
Provavelmente vão acontecer milhões de outras frustrações ao longo da minha vida.
E faz parte. Viver é aprender a lidar com os imprevistos e com as frustrações.
Hoje foi só um vestido, ainda bem.