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  • Dora Ghelman

O Tubarão




Era o penúltimo dia de viagem.

Depois de cinco dias, já estava bastante cansada de dormir e acordar em um barco.

Ainda mais com toda a minha família. Pai, mãe, irmã, tios, tias, primas, primos, avô, avó…

Amo todos. De paixão.

Mas todos os dias, de manhã, de tarde, de noite, sem ter para onde fugir… chega uma hora que cansa, mesmo.

Viemos fazer nossa viagem anual de mergulho.

O destino da vez foi o Arquipélago de Abrolhos.

Estávamos há cinco dias dentro de um barco, no meio das ilhotas.

Todos os dias fazíamos três mergulhos: um de manhã, um de tarde e um de noite.

Eu não vou nos mergulhos da noite por dois motivos:

1- Não tenho certificação de mergulho noturno;

2- Tenho um certo medinho de entrar no mar, no escuro, sem ter exatamente noção do meu entorno. Tipo aquele medo do fundo da piscina, sabe? De noite. Escuro. Impossível. Certamente as enguias da Pequena Sereia iriam morder meus pés e me arrastar para o fundo do mar, me levariam pra Úrsula, que com certeza iria me convencer a dar para ela a minha voz, mesmo eu não sendo a pessoa mais afinada do mundo, mas eu acabaria dando a minha voz em troca de qualquer outra coisa, porque eu sou muito bunda-mole e sempre caio nessas coisas tipo “venha fazer uma massagem por 500 reais e ganhe outra por mais 500” achando que estou fazendo o melhor negócio da minha vida, e eu nunca mais iria voltar pra superfície. Certamente.

Enfim… era o penúltimo dia da viagem.

Estávamos nos preparando para o primeiro mergulho do dia.

Seria em um naufrágio do lado de fora do arquipélago.

Teríamos que pegar um bote de apoio para nos levar até o local de descida do mergulho.

Cada um arrumou suas coisas, pegou seus equipamentos, deixou tudo organizado.

Minha irmã e minha mãe ficaram nos observando enquanto pegavam sol na parte da frente do barco – elas não mergulham, então ficaram a maior parte da viagem pegando sol na parte da frente do barco.

O mar estava mais mexido do que o normal, então o trajeto para o mergulho foi um tanto quanto desagradável.

O café da manhã cismou em não querer ficar no meu estômago, esse danado.

Os peixes devem ter amado o pão com queijo e presunto que receberam de brinde.

Chegando lá, o perrengue começou – se é que já não havia começado, depois do meu show no trajeto.

Como disse, o mar estava bastante mexido. Normalmente, o marinheiro deixa o barco ancorado para a gente se arrumar para o mergulho e descer. Depois, ele fica nos esperando no ponto da subida.

Nesse dia, estava impossível de se conseguir ancorar. O mar não estava deixando.

No meio disso tudo: o susto.

“Acho que vi uma barbatana… é possível?”, minha prima perguntou, baixinho, pro marinheiro.

“Barbatana? É possível sim! Estamos em alto mar, tem vários tubarões aqui pela área”, respondeu o cuidadoso marinheiro, alto para um cacete, o suficiente para todo mundo do bote o escutar.

Pânico. Geral. Se estabeleceu.

“Tubarão?”, minha tia gritou.

“Como assim?”, minha prima questionou.

“E como ele fala isso assim na maior normalidade e calmaria?”, quis saber meu pai.

“Eu é que não vou cair na água sabendo que tem um tubarão cercando o bote”, disse meu primo.

Mesmo com a bomba largada, o marinheiro pediu para o ajudante cair na água e largar a âncora no lugar certo para ela poder se prender.

Caos. Geral. Se estabeleceu.

“Não, ele não vai cair na água. Tá maluco?”, gritou meu pai, seguido do meu tio e da minha prima.

“Ele vai morrer!”, gritou minha tia, um pouco mais dramática.

No meio disso tudo, eu já estava vomitando novamente, visto que o bote estava há um tempo parado no mesmo lugar e, como disse antes, o mar estava bastante mexido.

Mesmo com os gritos de revolta, o ajudante fez um breve discurso dizendo que tubarões não se interessam por humanos que estão “de bobeira” na água. Que eles só atacam quem os ataca, ou quando sentem cheiro de sangue. E, como se estivesse indo para uma importante missão espacial em que o futuro da humanidade dependesse inteiramente dele, deu um salto-quase-que-mortal para trás, e desapareceu no mar.

Minha prima gritou.

Meu tio correu em sua direção para tentar segurá-lo.

Minha tia caiu no chão do barco.

Eu segui vomitando.

Minha prima começou a gritar comigo dizendo que meu vômito iria atrair o tubarão.

Meu pai começou a argumentar calmamente com a minha prima dizendo que isso não fazia sentido algum.

Meu primo disse que existem estudos afirmando que tubarões sentem o cheiro do medo.

Minha prima gritou de desespero porque estava morrendo de medo e o tubarão iria sentir o seu cheiro de longe.

Meu tio disse que esse estudo não era verdadeiro.

Eu parei de vomitar.

O ajudante conseguiu ancorar o barco.

Ele começou a nadar de volta.

Minha prima disse que o ajudante estava gritando alguma coisa.

“Me puxa! Me puxa! Me puxa!”, foram as palavras que aos poucos foram sendo escutadas. O ajudante estava pedindo socorro.

Desespero. Geral. Se estabeleceu.

Meu tio disse que o ajudante ia ser comido pelo tubarão.

Meu primo chorou.

Minha tia gritou dizendo que não tinha mais idade para passar por esse tipo de coisa.

Minha prima só gritava. Só. Gritava.

Eu voltei a vomitar.

Meu pai ficou sem reação.

O marinheiro, graças a Deus, pegou o cabo que estava amarrado no ajudante e começou a puxar.

Em dois segundos ele estava dentro do bote de volta.

Esbaforido, ele disse que sentiu o tubarão passar pelas suas pernas e que viu a barbatana. Era um tubarão tigre.

Agonia. Geral. Se estabeleceu.

Mas não tivemos tempo de ter todas as reações que gostaríamos de ter tido. O marinheiro logo disse que devíamos nos arrumar para descermos para o mergulho, pois o mar estava muito mexido e logo logo todos estariam passando mal.

“Como assim descer para o mergulho?”, perguntou a minha prima.

“Eu não vou mergulhar com um tubarão tigre rondando o bote”, disse meu tio.

Todos concordaram.

“Mas o tubarão já já vai embora”, disse o marinheiro. “Ele não fica muito tempo no mesmo lugar, aqui não é a área de caça dele”.

“Como você sabe?”, perguntei, meio atordoada de enjoo.

“Venho pra essas bandas há 30 anos e nunca vi nenhum ataque de tubarão. Sem contar que hoje é o último dia que vocês vão poder fazer esse mergulho, amanhã é dia de fazer a viagem de volta pra cidade… é agora ou nunca… e olha, esse naufrágio é o mais bonito de toda a região, viu?”

O silêncio se estabeleceu.

Ninguém falou.

Ninguém se mexeu.

Tirando eu. Eu me mexi. Porque eu tava meio vomitando, meio para fora, meio para dentro do bote, e meio tentando parecer bem.

O primeiro a falar foi meu pai.

Ele disse que devíamos fazer uma votação para decidirmos o que fazer. Seja fazermos o mergulho, seja voltarmos para o barco, deveríamos decidir juntos.

Todos concordaram.

Mas antes começou a rodada de argumentos.

Meu tio disse que iria passar o mergulho todo preocupado, que não iria conseguir aproveitar. Então votava para voltar para o barco. Meu primo e minha tia concordaram.

Minha prima disse que confiava no marinheiro, já que ele era experiente e conhecia a região. Se ele achava que era seguro mergulhar, ela também achava.

Meu pai concordou.

Se meu pai concordou, eu concordei. Não estava em condições de pensar muito.

Meu outro tio estava começando a fazer suas considerações, quando minha prima começou a vomitar pela lateral do bote.

Três segundos depois, meu primo.

Antes que pudéssemos concluir a votação, metade da família estava vomitando pela lateral do bote.

“Avisei que isso iria acontecer se a gente ficasse muito tempo aqui parados, não avisei?”, disse o marinheiro, já se levantando para agilizar a arrumação dos equipamentos de mergulho.

“Vamos logo mergulhar antes que todo mundo fique desidratado”, gritou meu pai.

Todos concordaram.

Em dez minutos estávamos todos na água.

Mergulhamos em bando.

Todos de mãos dadas, grudados.

Combinamos de intercalar os olhares: metade olhava para cima a procura do tubarão e a outra metade olhava para o naufrágio. A cada dez minutos a gente trocava.

E assim fomos.

Trinta e sete minutos de mergulho.

Trinta e sete minutos de um leve desespero, mas um desespero coletivo e bastante amoroso, se pararmos para pensar.

Deu tudo certo, no final das contas.

Subimos, nos desmontamos, voltamos para o barco e nenhum sinal do tubarão.

Ele de fato não ficou lá por muito tempo.

Mas olha… ficou tempo suficiente para causar uma péssima impressão.

E nos deixar uma boa história pra contar.

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